Ao contemplar este líquido magistral, de cariz milenar, o que se revela mais inquietante é saber por onde começar. O que terá a dizer um simples mortal, com tão breve mandato neste planeta, sobre um monumento destes? Encontro-me perante um autêntico monólito, que enfrentou a impiedosa prova do tempo e emergiu, não ferido, mas revigorado.
De uma perspetiva meramente temporal, apenas ousamos imaginar a realidade do nosso mundo no momento da sua génese. Tudo o que este vinho viveu e os momentos históricos com os quais coexistiu, desde o dia em que foi colhido. Thomas Edison tinha acabado de registrar o pedido de patente para o que viria a ser o primeiro projector de cinema. A primeira criança recém-nascida é deitada numa incubadora. As primeiras bebidas são consumidas através de uma palha, enquanto decorre a primeira gravação de um concerto de música clássica. Jack the Ripper mantinha a cidade de Londres refém das suas atrocidades, e Van Gogh, de orelha recém-perdida, ainda não conhecia o mais recente e inovador instrumento de escrita, a caneta esferográfica.
Provar um vinho desta dimensão é uma oportunidade única. São momentos como este que nos fazem sentir, recordar, angustiar, ansiar e rejubilar. Eles forçam-nos... ou melhor, eles inspiram-nos a reflectir sobre o nosso passado. Com cada gota, caída do céu, uma transcendência. Uma viagem líquida. Uma experiência fora-do-corpo que faz ecoar momentos vividos e preciosos, há tanto tempo esquecidos.
O soar distintivo de um taco de ácer ao embater no forro poeirento de uma bola de baseball, que voava em direcção à minha luva recém-engraxada, durante meu primeiro jogo da little league. O meu prémio pela jogada da vitória: uma mão-cheia dos melhores caramelos de english butter, feitos pela minha mãe e pousados sobre a minha mão quente e minúscula, como um verdadeiro tesouro. Voltar a casa, ao calor de uma lareira acesa e ao envolver reconfortante do abeto e do cedro. As brasas incandescentes, cujo estalar balança nos meus ouvidos e cujo calor aquece o licor de ovo nos meus lábios. Os aromas ardentes de canela, cravo e anis que dançam à luz de uma chama minguante.
Os dias mandriões junto ao mar. O cheiro a café recém-torrado, tão meigamente amargo quanto as sementes de uma uva de Chambertin, que flutua da cozinha para se misturar com as brizas amenas e salgadas do oceano. As luxuosas notas de Amêndoa Marcona, em galanteio com mãos-cheias de figos secos, sultanas e ameixas secas decadentemente ricas, que interrompem contos sórdidos e alegres histórias enquanto os aromas de charutos cubanos ardem até ao amanhecer. Golos de Cognac envelhecido escoam língua-abaixo, como a mais madura tangerina. Uma estimulante dentada numa laranja vermelha, que invoca expedições de séculos passados ao índico-oriental. Estes sabores tão extraterrestres que mais parecem fábulas do que verdades.
Manhãs resfriadas passadas no castelo de um amigo, com paredes ricas em histórias, glórias e horrores, tal como os sabores contidos neste copo de um exemplar Vinho do Porto. Sabores que flutuam à minha volta como uma aura, uma presença, um sexto-sentido mais do que algo tangível. Relembro-me de caminhar pelos terrenos em dias de outono, e sentir a fragrância das folhas caídas que cobrem o solo musgoso. O orvalho reluzente na madeira. A tapeçaria secular que cobria os painéis da parede de mogno, cujo almíscar era tão cativante e intemporal quanto o seu legado.
Vinhos como este só conseguem ser verdadeiramente descritos como emoções, ao invés de palavras. Impressões de uma viagem fantástica, ao invés de factos estéreis, pontos fortes e potenciais. Momentos como estes nada têm a ver com a prova de um mero vinho. São momentos em que o tempo para e ao mesmo tempo parece que flui todo de uma vez. São experiências por si só, excepcionais e raras, para serem apreciadas pelos poucos privilegiados com sorte suficiente para o fazer. É claro que eu poderia gastar páginas e páginas a divagar sobre a beleza intoxicante deste espécime. No entanto, há uma verdade absoluta que me força à brevidade: a beleza deste vinho recai sobre o palato de quem o contempla. Já escrevi a minha história, chegou a altura de começar a escrever a sua.